"contra tudo o que não for loucura ou poesia."
(Jorge de Lima, Poesias)
Versos criados coletivamente após a leitura de poemas — sempre três autores consagrados apresentados a cada vez — nos encontros às terças-feiras. Se você ler simultaneamente os poemas coletivos e os lidos, verá curiosas interligações!
"a poesia deve ser feita por todos, não por um."
(Lautréamont, Poesias)
CRIAÇÃO COLETIVA
Mancha Vermelha num Papel Azul chamado Destino
O sangue desce a rua
Com o cristal
Numa das mãos.
Ele havia se levantado
Sonâmbulo
Naquela manhã.
Azul sem fim:
O mar nasce da estrada.
O sangue se vê no espelho
— Estou trancado no mundo.
POEMAS LIDOS AO LONGO DOS ENCONTROS
A mulher de Lot
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração — amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus — simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
POEMAS LIDOS AO LONGO DOS ENCONTROS
A mulher de Lot
(Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, pg. 56/57)
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração — amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus — simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
[ Veja mais ]
I, Trovas de muito amor para um amado senhor
(Exercícios, Hilda Hilst, pg. 175)
Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei
Para que seja leve
Meu passo
Em vosso
Caminho.
[ Veja mais ]
[Tu e eu]
(Poemas místicos, Jalal ud-Din Rumi, tradução de José Jorge de Carvalho, pg. 59)
Feliz o momento em que nos sentarmos no palácio,
dois corpos, dois semblantes, uma única alma
— tu e eu.
E ao adentrarmos o jardim, as cores da alameda
e a voz dos pássaros nos farão imortais
— tu e eu.
As estrelas do céu virão contemplar-nos
e nós lhe mostraremos a própria lua
— tu e eu.
Tu e eu, não mais separados, fundidos em êxtase,
felizes e a salvo da fala vulgar
— tu e eu.
As aves celestes de rara plumagem
por inveja perderão o encanto
no lugar em que estaremos a rir
— tu e eu.
Eis a maior das maravilhas: que tu e eu,
sentados aqui neste recanto, estejamos agora
um no Iraque, outro em Khorassan
— tu e eu.
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